O inconsciente freudiano entre a psiquiatria e a neurociência: mal-entendidos e fronteiras epistemológicas
Nos últimos anos, tem se tornado comum a tentativa de aproximar o conceito de inconsciente desenvolvido por Freud e sustentado pela tradição psicanalítica das descobertas contemporâneas das neurociências. Muitas dessas tentativas, no entanto, incorrem em reducionismos e equívocos conceituais graves. Este artigo propõe discutir os limites dessas aproximações, especialmente a distinção entre o inconsciente dinâmico da psicanálise e o inconsciente operacional que aparece em alguns setores da neurociência.
Inconsciente na neurociência: circuitos e automatismos
Na literatura neurocientífica, há quem tente localizar o inconsciente em estruturas cerebrais específicas, como o sistema límbico ou o núcleo accumbens — regiões tradicionalmente associadas às emoções e à memória afetiva. Em alguns estudos, como o de Anderson e Gabriele (2004), por exemplo, identificou-se uma possível “supressão de lembranças indesejadas” por meio da ativação do córtex pré-frontal dorsolateral e da inibição do hipocampo. A partir desses dados, muitos chegaram à conclusão apressada de que estariam diante de um “inconsciente freudiano”.
Contudo, o fenômeno identificado por Anderson e Gabriele se aproxima muito mais da supressão consciente do que do recalque psicanalítico. Enquanto a supressão é um processo ativo e voluntário — do tipo “não quero pensar sobre isso agora” —, o recalque é uma operação inconsciente que produz divisões no sujeito e cujo retorno se dá por vias indiretas: sonhos, atos falhos, sintomas, chistes, lapsos.
Além disso, grandes nomes da neurociência, como Michael Gazzaniga e Francis Crick, defendem que toda ação humana seria inconsciente no sentido biológico — ou seja, automática, determinada por processos neuroquímicos que precedem a consciência. Esse “inconsciente” seria o nome dado ao conjunto de eventos cerebrais que ocorrem abaixo do limiar da percepção consciente, negando inclusive a existência do livre-arbítrio. Segundo essa linha de pensamento, o cérebro “decide” antes de pensarmos que decidimos.
Esse inconsciente da neurociência, porém, não é um inconsciente que fala, que se manifesta por formações simbólicas, que estrutura o sujeito. Trata-se de um inconsciente sem linguagem, sem desejo, sem divisão subjetiva — em outras palavras, radicalmente distinto daquele concebido por Freud.
O inconsciente freudiano: retorno do recalcado e estrutura simbólica
O inconsciente na psicanálise tem uma história diferente. Ele não é um “lugar” no cérebro, mas um efeito de linguagem. Freud, a partir de sua clínica com pacientes histéricos, construiu a noção de inconsciente como aquilo que retorna disfarçado: nos sonhos, nos atos falhos, nas piadas, nos sintomas.
A célebre formulação de Lacan — “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” — não é uma metáfora poética. Trata-se de uma afirmação epistemológica: o inconsciente freudiano se manifesta em encadeamentos significantes, em lapsos, repetições e desvios de sentido que mostram que o sujeito fala mais do que pretende dizer. O que escapa da intenção consciente é o que denuncia o inconsciente.
Outro ponto essencial: os afetos não são inconscientes para Freud. No texto O inconsciente (1915), ele afirma claramente que o que pode ser recalcado são as representações, os significantes, e não os afetos em si. Os afetos podem ser transformados ou deslocados, mas não recalcados. Logo, não faz sentido, do ponto de vista da psicanálise, dizer que “emoções estão no inconsciente”.
Psiquiatria: um campo plural
A psiquiatria, diferentemente da neurociência, é uma prática clínica que pode ser informada por múltiplas referências teóricas. Há espaço, por exemplo, para a psiquiatria fenomenológica, a psiquiatria dinâmica (baseada na psicanálise), bem como a psiquiatria biológica (informada pelas neurociências).
Dentro dessa pluralidade, o inconsciente freudiano pode ter lugar na prática psiquiátrica — sobretudo nas abordagens que reconhecem o valor da escuta clínica, da subjetividade e da história do paciente. Já na neurociência, entendida em sentido estrito, não há espaço para o inconsciente freudiano, pois os modelos dessa ciência operam com causalidades lineares e funcionais, distantes da lógica do desejo e do sintoma.
Conclusão: inconscientes de ordens diferentes
É possível afirmar, portanto, que o que se chama de “inconsciente” na neurociência e na psicanálise são conceitos homônimos, mas não equivalentes. A neurociência descreve processos automáticos e cerebrais; a psicanálise escuta formações de linguagem que denunciam um saber que escapa ao sujeito.
Confundir essas ordens é, no mínimo, improdutivo — e, no máximo, um erro epistemológico grave. A contribuição da psicanálise não pode ser traduzida em mapas cerebrais, assim como os impulsos neuronais não dizem nada sobre a verdade do desejo.
A interlocução entre psicanálise e outras disciplinas é possível e desejável, desde que se reconheçam as diferenças fundamentais que as constituem. O inconsciente freudiano permanece uma noção que só faz sentido a partir do campo clínico, simbólico e relacional onde ele se manifesta: a fala do sujeito diante de outro que escuta.
Veja a análise do Prof. Dr. Durval Mazzei N. Filho sobre esse tópico: