A sexualidade humana sempre foi campo fértil para o controle, o julgamento e a tentativa de normatização. Seja por códigos religiosos, morais ou políticos, o desejo humano foi, historicamente, medido por regras externas. Mas o que diz a psicanálise sobre isso? Existe uma sexualidade “normal” ou “certa” na clínica psicanalítica? A resposta, ainda que desconcertante para alguns, é: não.
A psicanálise e a recusa à normatividade sexual
A psicanálise, desde sua origem com Freud, não opera com ideais normativos sobre a sexualidade. Freud foi um dos primeiros pensadores a reconhecer a complexidade do desejo e a singularidade da organização libidinal de cada sujeito. Em sua obra Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905), ele rompe com a ideia de uma sexualidade exclusivamente reprodutiva, reconhecendo a existência da sexualidade infantil e a diversidade das formas de prazer.
Do ponto de vista analítico, não há uma forma “mais correta” de expressão sexual — seja ela heterossexual, homossexual, bissexual, transgênero ou qualquer outra. O que interessa à psicanálise não é a adequação a um modelo social, mas o modo como a libido se organiza em cada sujeito, como o desejo se estrutura e como isso afeta sua vida psíquica.
Portanto, a psicanálise não trabalha com diagnósticos morais sobre a sexualidade. Nenhuma orientação sexual ou identidade de gênero é, em si, superior a outra. Os analistas, por formação, evitam grandes generalizações e se debruçam sobre a singularidade de cada caso.
A crítica ao ideal normativo
Ao longo da história, especialmente em sociedades ocidentais de matriz judaico-cristã, foi instituída uma ideia de normalidade sexual associada à heterossexualidade reprodutiva. Essa normatividade esteve (e ainda está) ligada a discursos religiosos, políticos e sociais que organizam a sexualidade em torno da procriação, da moral e da família tradicional.
Contudo, a psicanálise não tem como critério a função biológica da sexualidade. Ela reconhece que o desejo humano vai além da função reprodutiva e se constrói a partir de fantasias, traumas, identificações e formações inconscientes. Assim, o valor da sexualidade na psicanálise não está em seu destino biológico, mas em sua significação psíquica.
A desconstrução da “vida normal”
Um dos grandes psicanalistas contemporâneos, Adam Phillips, provoca ao intitular um de seus livros Louco para Ser Normal. Ele questiona o que está por trás da obsessão moderna pela normalidade. Em muitos contextos atuais, ser “normal” significa evitar intensidades, eliminar o conflito e padronizar o desejo.
Essa normatividade não apenas sufoca a singularidade, mas também nega a riqueza do inconsciente e do desejo. A psicanálise, ao contrário, convida o sujeito a se implicar em seu próprio enigma — e não a se enquadrar em fórmulas prontas.
Sexualidade, identidade e narcisismo contemporâneo
Na cultura atual, marcada pelo consumo de massa e pelas redes sociais, há uma crescente pressão para vincular a identidade do sujeito à sua performance sexual e à visibilidade que ela gera. Isso leva à tentação de reduzir a identidade à sexualidade, como se fosse possível esgotar o sujeito em um rótulo identitário.
A psicanálise adverte: a sexualidade é um aspecto da identidade, mas não a esgota. Reduzir o sujeito à sua orientação sexual ou identidade de gênero é perder de vista a complexidade de sua constituição psíquica. É como se, ao tentar escapar de velhos estigmas, corrêssemos o risco de criar novas formas de aprisionamento simbólico.
Além disso, a cultura contemporânea parece deslocar o ideal do “eu” para o ideal do “ego”: ser admirado, ser invejado, ser visto. O corpo, o desejo e até mesmo o amor se tornam objetos de consumo e performance. O amor, por sua vez, passou a ocupar um lugar ambíguo: ao mesmo tempo idealizado e profundamente frustrante. Em muitos contextos, amar se tornou mais traumático do que desejar.
Tolerância e narcisismo das pequenas diferenças
Em sociedades que pregam a diversidade e a liberdade de escolha, paradoxalmente ainda se veem reações conservadoras e intolerantes. Muitas vezes, o que se apresenta como “diferença” é imediatamente hierarquizado: o outro é não apenas diferente, mas inferior. Isso é o que Freud chamou de narcisismo das pequenas diferenças — o impulso de criar distinções mínimas apenas para manter um sentimento de superioridade.
A tolerância, no sentido psicanalítico, não é aceitar apenas o que se gosta. Tolerar é aceitar a existência daquilo que nos desafia, nos desconforta, mas que tem direito de existir. A subjetividade humana, para a psicanálise, se constrói no convívio com a alteridade — e não em sua negação.
Considerações finais: um convite à escuta
A psicanálise não propõe normas, mas escuta. Escuta o desejo, o conflito, a dor, o desvio, a fantasia. Escuta aquilo que não se encaixa — e é exatamente aí que se revela o sujeito.
No debate sobre sexualidade, identidade e normatividade, a contribuição da psicanálise está em sua capacidade de complexificar, e não simplificar. Em vez de reduzir o sujeito a comportamentos, rótulos ou padrões, a psicanálise pergunta: o que o seu desejo diz sobre você? O que há de singular na sua forma de amar e desejar?
A normatização da sexualidade, vista sob a lente psicanalítica, não apenas empobrece a experiência humana — ela obscurece o desejo. E, para a psicanálise, é no desejo que o sujeito se constitui. Não há norma que caiba no inconsciente.
Veja a interpretação do prof. Luís Henrique M. Novaes sobre este tópico:
https://youtu.be/lXDRRFZCtyw